quinta-feira, 17 de abril de 2008

Pessoa - Drummond - Gulla

REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou

isto –

Nesta localidade da cidade...


Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)


Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me possa lembrar...


O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço

melhor por dentro

De que esse eu-mesmo que há vinte anos

passava aqui!


Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...


Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a

si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que

eu, mas lembradamente azul.



Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero

imaginar nada...


Houve um dia em que subi esta rua pensando

alegremente no futuro,

Pois Deus dá licença que o que não existe seja

fortemente iluminado,

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso

alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a imprenssão que as duas figuras se cruzaram

na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o

cruzamento.


Olhamos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro

girassol

E eu mesmo lá desci a rua não imaginando nada.


Talvez isso realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...


Sim, talvez...

(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)



MUNDO GRANDE


Não, meu coração não é maior que o mundo,

é muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho

[cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.

Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu

[espereva.

Mas também a rua não cabem todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.


Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e

[livros, carne, algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso,

[amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele se estale.


Fecha os olhos e esquece.

Escuta a água nos vidros,

tão calma. Não anuncia nada.

Entretanto escorre nas mãos,

tão calma! vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?

Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que os homens se comunicam.)


Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.

Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.


Outrora viajei,

países imaginários, fáceis de habitar,

ilhas sem problemas, não obstante exaustivas

[e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem,

entretanto alguns se salvaram e

trouxeram a noticia

de que o mundo, o grande mundo está

[crescendo todos os dias

entre o fogo e o amor.


Então, meu coração também pode crescer.

Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu coração cresce dez metros e explode,

- Ó vida futura! nós te criaremos.

(Carlos Drummond de Andrade)



DOIS E DOIS: QUATRO


Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro

e a liberdade pequena


Como teus olhos são claros

e a tua pele, morena


como é azul o oceano

e a lagoa, serena


como um tempo de alegria

por trás do terror me acena


e a noite carrega o dia

no seu colo de açucena


- sei que dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena


mesmo que o pão seja caro

e a liberdade, pequena.

(Ferreira Gullar)

Nenhum comentário: