terça-feira, 14 de outubro de 2008

Skandala

Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós.
[...]
A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus exemplos e a sua companhia, e a partir da recusa ou incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.
(Arendt, Hannah. Responsabilidade e julgamento, p. 212).

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Só a vida basta?

Fiat iustitia, pereat mundus (Deve o mundo perecer para que a justiça seja feita?) - Kant: Wenn die Gerechtigkeit untergeht, hat es keinen Wert mehr, dass Menschen auf Erden leben (Se a justiça perece, a vida humana na terra perde o seu significado.

(Arendt, Hannah. Responsabilidade e julgamento, p. 115).

A falácia do mal menor - Arendt

Se somos confrontados com dois males, assim reza o argumento, é nosso dever optar pelo menor, ao passo que é irresponsável nos recursarmos a escolher [...] A aceitação de males menores é conscientemente usada para condicionar [...] a aceitar o mal em si mesmo.

(Arendt, Hannah. Responsabilidade e julgamento, pp. 98/99).

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A aparência como categoria política

A rigor, a polis não é a cidade-estado em sua localização física; é a organização que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam [...] Privar-se dele significa privar-se da realidade que, humana e politicamente, é o mesmo que a aparência. Para os homens, a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros, pelo fato de aparecerem a todos: "pois chamamos de Existência àquilo que aparece a todos; e tudo o que deixa de ter essa aparência surge e se esvai como um sonho - íntima e exclusivamente nosso mas desprovido de realidade".

Arendt, Hannah. A condição humana, 10 ed., trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 211.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Coragem de ser e participação

A coragem de ser como uma parte é a coragem de afirmar o próprio ser pela participação. Participa-se do mundo ao qual se pertence e do qual se está, ao mesmo tempo, separado. Porém, o participar do mundo torna-se real através da participação naquelas secções dele que constituem nossa própria vida. O mundo, como um todo, é potencial, não real. São reais aquelas secções às quais se é parcialmente idêntico. O quanto mais o ser tenha auto-relacionamento mais ele é capaz, segundo a estrutura polar da realidade, de participar. O homem, como o ser completamente centralizado, ou como uma pessoa, pode participar de tudo, mas ele participa através daquela secção do mundo que o faz uma pessoa. Só pelo contínuo encontro com outras pessoas é que a pessoa se torna e permanece uma pessoa. O lugar desse encontro é a comunidade.

Tillich, Paul. A coragem de ser, 6 ed., trad. Eglê Malheiros, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 71.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Globalização e (in)segurança.

Num mundo globalizado financeiramente, os governos locais são pouco mais que superdistritos policiais, tendo como as principais funções varrer mendigos e perturbadores das ruas, erguer muros e prisões, instalar câmaras e equipamentos de segurança, enfim, investir na suposta segurança e bem-estar dos munícipes. Sendo assim, as tarefas do "estado ordeiro" resumem-se à tarefa de combate ao crime.

DE AGUIAR, Maria Léa Monteiro. O aparato de segurança e a sensação de insegurança, in Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 2, n.2, p. 230, Fortaleza, 2005.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Roussseau: Discurso sobre as ciências e as artes


[...] Não se ousa mais parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem. Nunca se saberá, pois, com quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o amigo, esperar pelas grandes ocasiões, isto é, esperar que não haja mais tempo para tanto, porquanto para essas ocasiões é que teria sido essencial conhecê-lo.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Nómos da terra - Agambem

É esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos espaços públicos em que ainda vivemos. Mais íntimo que toda interioridade e mais externo que toda estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra. Ele é o nómos soberano que condiciona todas as normas, a espacialização originária que torna possível e governa toda localização e toda territorialização. E se, na modernidade, a vida se coloca sempre mais claramente no centro da política estatal (que se tornou, nos termos de Foucault, biopolítica), se, no nosso tempo, em um sentido particular realíssimo, todos os cidadãos apresentam-se virtualmente como homines sacri, isto somente é possível porque a relação de bando constituía desde a origem a estrutura própria do poder soberano.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, I, trad. Henrique Burigo, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 117.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A ambivalência dos conceitos em Heidegger

Que seja mister definir provisoriamente o significado das palavras no anúncio da lição radica na peculiaridade dos conceitos filosóficos. Nas ciências particulares os conceitos vêem determinados pelo lugar que ocupam dentro da ordem de um complexo temático, e por isso estão fixados com maior exatidão quanto mais o complexo temático a que pertençam é conhecido. No entanto, os conceitos filosóficos são oscilantes, vagos, variados, flutuantes, o que também se põe de manifesto na mudança dos pontos de vista filosóficos. Mas o certo dos conceitos filosóficos não radica exclusivamente na mudança do ponto de vista, mas sim, no sentido dos conceitos filosóficos mesmo, por serem sempre incertos. A possibilidade de aceder aos conceitos filosóficos se mostra completamente diversa à de aceder aos conceitos científicos. A filosofia não dispõe de um complexo temático plenamente objetivado no qual os conceitos filosóficos possam ser ordenados.

HEIDEGGER, Martin. Introducción a la fenomenologia de la religión, trad. Jorge Uscatescu, Ciudad de México: Fondo de Cultura Economica, 2006, p. 4, tradução Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Enquanto Sade Diz...

Enquanto Sade diz

... Love is stronger than pride...

Você se despe de todo o pudor que

Lhe recobre a tez ainda rubra...

O que se vê não deveria ser visto por ninguém:

A perfeição deve ser reservada somente para os deuses

(Que provavelmente não saberiam o que fazer!)

A pela alva a combinar com os bicos rosados

Dos seios que se insinuam abruptos mal-educados desrespeitosos

Frente a tanta comoção que provocam

(Eles sabem ser os mais belos que existem)

Mas a perfeição mesma se encontra em seu ventre

Que de tão belo e desejável mais se aparenta

À taça da ira que derramará sobre os mortais

Todas as maldições previstas nos livros da revelação...

(A consumação dos tempos é agora e não o antes e o depois)

... Nothing can come between us... Sade insinua,

E você finge

Não perceber que toda a natureza -

Secas tsunamis ciclones furacões -

Se silencia no momento em que o

Aroma de seu hálito

Se faz percebível...

... Like a tatoo...

As marcas são mais profundas que os

Poros músculos veias juntas ossos e alma

Possam geograficamente demarcar

(Os deuses não se preocupam com os homens – só os homens com eles).

terça-feira, 13 de maio de 2008

Giorgio Agamben - A Comunidade que Vem - Capítulo 1

O ser que vem é o ser que, seja como for, importa. Na enumeração escolástica do transcendental (quodlibet ens est unum, verum, bonnum seu perfectum, qualquer que seja o ente é um, verdadeiro, bom ou perfeito), o termo que restando impensado em cada um, mas que condiciona o significado de todos os outros termos é o adjetivo quodlibet. A tradução corrente no sentido de “não importa qual, indiferentemente” é certamente correta, mas, quanto à forma, exprime exatamente o contrário do latino: quodlibet ens não é “o ser, não importa qual”, mas “o ser tal que, seja como for, importa”; ele contém, então, desde sempre uma devolução ao desejar, o ser não-importa-qual (qual-si-voglia)[1] está em relação original com o desejo.

O qualquer que seja que aqui está em questão não toma, de fato, a singularidade na sua diferença em relação a uma propriedade comum (a um conceito, por exemplo: o ser russo, francês ou muçulmano), mas somente no seu ser tal como é. Com isto, a singularidade se desliga do falso dilema que compromete a experiência do universal, uma vez que o inteligível, conforme a bela expressão de Gersonide, não é um universal nem um indivíduo enquanto contido numa classe, mas “singularidade enquanto singularidade qualquer que seja”. Nesta, o-ser-tal é retomado do seu pertencer a esta ou aquela propriedade, da qual identifica a atribuição a este ou aquele conjunto, a esta ou aquela classe (os russos, os franceses, os muçulmanos) – e retoma não em relação à outra classe ou em relação a uma simples ausência genérica de toda atribuição semelhante. Pois o-ser-tal, que resta constantemente escondido na condição de atribuição (“um x tal que pertence a y”), e que não é de modo algum um predicado real, vem igualmente à luz: a singularidade exposta como tal é não-importa-qual (qual-si-voglia), isto é, amável.

Uma vez que o amor jamais se dirige em relação a esta ou aquela propriedade do amado (o-ser-loiro, jovem, meigo, coxo), da mesma forma que nem mesmo desta prescinde em nome da insípida generalidade (o amor universal): ele requer o objeto com todos os seus predicados, o seu ser tal como é. Ele deseja o qual só enquanto é tal – isto é o seu particular fetichismo. Pois a singularidade qualquer que seja (o Amável) não é mais capacidade de qualquer coisa, desta ou daquela qualidade ou essência, mas somente a capacidade de uma incapacidade. O movimento, que Platão descreve como anamnese erótica, é aquele que transporta o objeto não na direção de outra coisa ou outro lugar, mas na direção de seu ter-lugar – na direção da Idéia

AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene, Torino: Bollati Boringhieri, pp. 9-10, 2001 – Tradutor: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira.



[1] A afirmação da existência de uma relação original entre o ser qualquer que seja e o desejo, donde a idéia de uma devolução daquele a este, somente é compreensível tendo-se em vista que a palavra italiana qualsivoglia já trás em sua composição o desejo (voglia).

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Henri Cartier Bresson




"[...] the decisive moment, it is the simultaneous recognition, in a fraction of a second, of the significance of an event as well as the precise organization of forms which gives that event its proper expression."


segunda-feira, 5 de maio de 2008

A Palavra Final - Elemér Horváth

A Palavra final pertence ao Editor
ele tem um secretário da cultura
o Secretário tem um primeiro-ministro
o Primeiro-ministro tem um governo
o Governo tem uma polícia
a Polícia tem armas

Eu tenho um poema
o poema é um tirano
recusa assumir compromissos
no sentido estrito da palavra
é a palavra final.

HORVÁTH, Elemér. A neve é azul como uma laranja.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

O Macaco Que Queria Ser Um Escritor Satírico - Augusto Monterroso

Na Selva viveu uma vez um Macaco que queria ser um escritor satírico.

Estudou muito, mas rapidamente percebeu que para ser um escritor satírico lhe faltava conhecer os outros e aplicou-se a visitá-los todos e a ir aos cocktails e a observá-los pelo canto do olho en­quanto estavam distraídos com um copo na mão.

Como era muito divertido e as suas ágeis pirue­tas entretinham os outros animais, era bem re­cebido em qualquer parte e aperfeiçoou a arte de ser ainda melhor recebido.

Não havia quem não ficasse fascinado com a sua conversa e quando chegava era recebido com júbilo tanto pelas Macacas como pelos esposos das Macacas e pelos outros habitantes da Selva, perante os quais, por contrários que lhe fossem em política internacional, nacional ou domésti­ca, se mostrava invariavelmente compreensivo; sempre, claro, com vontade de investigar a fun­do a natureza humana para poder retratá-la nas suas sátiras.

Chegou assim o momento em que de entre os animais era ele o maior conhecedor da natureza humana, sem que nada lhe escapasse.

Então, um dia disse a si próprio “vou escrever contra os ladrões”, e concentrou-se na Pêga, e começou a fazê-lo com entusiasmo e gozava e ria e trepava de prazer às árvores por causa das coisas que lhe ocorriam acerca da Pêga; mas de repente lembrou-se de que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas Pêgas e especialmente uma, e que se iam ver retratadas na sua sátira, por suave que a escrevesse, e desis­tiu de o fazer.

Depois quis escrever sobre os oportunistas, e ficou com a Serpente debaixo de olho, a qual, por diversos meios que resultavam da sua arte adulatória, lograva sempre conservar, ou substi­tuir, melhorando-os, os seus cargos; mas várias Serpentes suas amigas, e especialmente uma, sentir-se-iam atingidas, e desistiu de o fazer.

Depois desejou satirizar os trabalhadores com­pulsivos e deteve-se na Abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para quê nem para quem; mas por medo que os seus amigos des­te género, e especialmente um, se ofendessem, acabou por compará-la favoravelmente à Cigar­ra, que, egoísta, não fazia senão cantar e can­tar, dando-se ares de poeta, e desistiu de o fazer.

Depois ocorreu-lhe escrever contra a promiscui­dade sexual e dirigiu a sua sátira contra as Gali­nhas adúlteras que andavam todo o dia inquie­tas em busca de jovens Galos; mas tantas destas já o tinham recebido que temeu ofendê-las, e desistiu de o fazer.

Finalmente, elaborou uma lista completa das debilidades e defeitos humanos e não encon­trou contra quem dirigir as suas baterias, pois todos estavam nos amigos que partilhavam a sua mesa e em si próprio.

Nesse momento renunciou a ser escritor satírico e começou a dar-lhe para a Mística e o Amor e essas coisas; mas por causa disso, já se sabe como são as pessoas, todos disseram que tinha ficado louco e já não o recebiam tão bem nem com tanto gosto.

MONTERROSO, Augusto. A ovelha negra e outras fábulas, trad. Ana Bela Almeida, Coimbra: Angelus Novus, pp. 15-17, 2008.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

O Coelho e o Leão - Augusto Monterroso

Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da Selva, meio perdido.

Com a força que dão o instinto e a sede investi­gadora conseguiu facilmente subir a uma altíssima árvore, a partir da qual pôde observar à von­tade não apenas o lento pôr-do-sol como a vida e os hábitos de alguns animais, que comparou uma e outra vez com os dos seres humanos.

Ao cair da tarde viu aparecerem, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão.

No início não aconteceu nada digno de ser mencionado mas pouco depois ambos os ani­mais sentiram as suas respectivas presenças e, quando deram um com o outro, cada qual rea­giu como tinha vindo a fazer sempre desde que o homem era homem.

O Leão estremeceu a Selva com os seus rugidos, sacudiu a juba majestosamente como era seu costume e rasgou o ar com as suas garras enor­mes, o Coelho respirou mais depressa, viu por um instante os olhos do Leão, deu meia volta e afastou-se a correr.

De regresso à cidade o célebre Psicanalista pu­blicou cum laude o seu famoso tratado no qual demonstra que o Leão é o animal mais infantil e cobarde da Selva, e o Coelho o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o Universo movido pelo medo; o Coelho, perce­bendo isto, consciente da sua própria força re­tira-se antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, que ele já conhece e que afinal nunca lhe fez nada.

MONTERROSO, Augusto. A ovelha negra e outras fábulas, trad. Ana Bela Almeida, Coimbra: Angelus Novus, pp. 13-14, 2008.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Monólogo do Mal - Augusto Monterroso

Um dia o Mal encontrou-se face a face com o Bem e esteve a ponto de o engolir para acabar de uma vez por todas com aquela disputa ridícula; mas ao vê-lo tão pequenino o Mal pensou:

"Isto só pode ser uma emboscada; pois se eu agora engolir o Bem, que se encontra tão fraco, as pessoas vão pensar que fiz mal, e eu vou encolher-me tanto de vergonha que o Bem não desperdiçará a oportunidade e engolir-me-á a mim, com a diferença de que nessa altura toda a gente pensará que ele fez bem, pois é difícil arrancá-la aos seus moldes mentais consistentes de que o que o Mal faz é mau e o que o Bem faz é bom."

E assim o Bem salvou-se mais uma vez.

MONTERROSO, Augusto. A ovelha negra e outras fábulas, trad. Ana Bela Almeida, Angelus Novus, 2008, Coimbra.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Pessoa - Drummond - Gulla

REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...

Nada está mudado – ou, pelo menos, não dou

isto –

Nesta localidade da cidade...


Há vinte anos!...

O que eu era então! Ora, era outro...

Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!

Sei eu o que é útil ou inútil?)...

Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)


Tento reconstruir na minha imaginação

Quem eu era e como era quando por aqui passava

Há vinte anos...

Não me lembro, não me possa lembrar...


O outro que aqui passava então,

Se existisse hoje, talvez se lembrasse...

Há tanta personagem de romance que conheço

melhor por dentro

De que esse eu-mesmo que há vinte anos

passava aqui!


Sim, o mistério do tempo.

Sim, o não se saber nada,

Sim, o termos todos nascido a bordo.

Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...


Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a

si mesma,

Debruçava-se então uma rapariga mais velha que

eu, mas lembradamente azul.



Hoje, se calhar, está o quê?

Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.

Estou parado física e moralmente: não quero

imaginar nada...


Houve um dia em que subi esta rua pensando

alegremente no futuro,

Pois Deus dá licença que o que não existe seja

fortemente iluminado,

Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso

alegremente.

Quando muito, nem penso...

Tenho a imprenssão que as duas figuras se cruzaram

na rua, nem então nem agora,

Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o

cruzamento.


Olhamos indiferentemente um para o outro.

E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro

girassol

E eu mesmo lá desci a rua não imaginando nada.


Talvez isso realmente se desse...

Verdadeiramente se desse...

Sim, carnalmente se desse...


Sim, talvez...

(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)



MUNDO GRANDE


Não, meu coração não é maior que o mundo,

é muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho

[cruamente nas livrarias:

preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.

Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu

[espereva.

Mas também a rua não cabem todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.


Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e

[livros, carne, algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso,

[amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele se estale.


Fecha os olhos e esquece.

Escuta a água nos vidros,

tão calma. Não anuncia nada.

Entretanto escorre nas mãos,

tão calma! vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?

Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que os homens se comunicam.)


Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.

Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.


Outrora viajei,

países imaginários, fáceis de habitar,

ilhas sem problemas, não obstante exaustivas

[e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem,

entretanto alguns se salvaram e

trouxeram a noticia

de que o mundo, o grande mundo está

[crescendo todos os dias

entre o fogo e o amor.


Então, meu coração também pode crescer.

Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu coração cresce dez metros e explode,

- Ó vida futura! nós te criaremos.

(Carlos Drummond de Andrade)



DOIS E DOIS: QUATRO


Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro

e a liberdade pequena


Como teus olhos são claros

e a tua pele, morena


como é azul o oceano

e a lagoa, serena


como um tempo de alegria

por trás do terror me acena


e a noite carrega o dia

no seu colo de açucena


- sei que dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena


mesmo que o pão seja caro

e a liberdade, pequena.

(Ferreira Gullar)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O lamento inicial de Fausto - Goethe


Nacht: In einem hochgewölbten, engen gotischen Zimmer Faust, unruhig auf seinem Sessel am Pulte:

FAUST:

Habe nun, ach! Philosophie,
Juristerei und Medizin,
Und leider auch Theologie
Durchaus studiert, mit heißem Bemühn.
Da steh ich nun, ich armer Tor!
Und bin so klug als wie zuvor;
Heiße Magister, heiße Doktor gar
Und ziehe schon an die zehen Jahr
Herauf, herab und quer und krumm
Meine Schüler an der Nase herum-
Und sehe, daß wir nichts wissen können!
Das will mir schier das Herz verbrennen.
Zwar bin ich gescheiter als all die Laffen,
Doktoren, Magister, Schreiber und Pfaffen;
Mich plagen keine Skrupel noch Zweifel,
Fürchte mich weder vor Hölle noch Teufel-
Dafür ist mir auch alle Freud entrissen,
Bilde mir nicht ein, was Rechts zu wissen,
Bilde mir nicht ein, ich könnte was lehren,
Die Menschen zu bessern und zu bekehren.
Auch hab ich weder Gut noch Geld,
Noch Ehr und Herrlichkeit der Welt;
Es möchte kein Hund so länger leben!
Drum hab ich mich der Magie ergeben,
Ob mir durch Geistes Kraft und Mund
Nicht manch Geheimnis würde kund;
Daß ich nicht mehr mit saurem Schweiß
Zu sagen brauche, was ich nicht weiß;
Daß ich erkenne, was die Welt
Im Innersten zusammenhält,
Schau alle Wirkenskraft und Samen,
Und tu nicht mehr in Worten kramen.

---xxx---xxx---xxx---xxx---xxx---

Noite:
Num quarto gótico, com abóbadas altas e estreitas, Fausto, agitado, sentado à mesa de estudo:

FAUSTO

Ai de mim! da filosofia
Medicina, jurisprudência, e mísero eu! da teologia,
O estudo fiz, com máxima insistência.
Pobre simplório, aqui estou
E sábio como dantes sou!
De doutor tenho o nome e mestre em artes,
E levo dez ano por estas partes,
Prá cá e lá, aqui ou acolá
Os meus discípulos pelo nariz.
E vejo-o, não sabemos nada!
Deixa-me a mente amargurada.
Sei ter mais tino que esses maçadores,
Mestres, frades, escribas e doutores;
Com dúvidas e escrúpulos não me alouco,
Não temo o inferno e satanás tampouco
Mas mata-me o prazer no peito;
Não julgo algo saber direito,
Que leve aos homens uma luz que seja
Edificante e benfazeja.
Nem de ouro e bens sou possuidor,
Ou de terreal fama e esplendor;
Um cão assim não viveria!
Por isso entrego-me à magia,
A ver se o espiritual império
Pode entreabrir-me algum mistério,
Que eu já não deva, oco e sonoro,
Ensinar a outrem o que ignoro;
Para que apreenda o que a este mundo
Liga em seu âmago profundo,
Os germes veja e as vivas bases,
E não remexa mais em frases.
Oh, nunca mais argênteo luar,
Me comtemplasses o pensar!
Quanta vez, a esta mesa aqui,
Alta noite, esperei por ti!
Então, por sobre o entulho antigo
Surgias, taciturno amigo!
Ah! seu eu pudesse, em flóreo prado,
Vaguear em teu fulgor prateado,
Flutuar com gênios sobre fontes,
Tecer na semiluz dos montes,
Livre de todo saber falho,
Sarar, em banho teu, de orvalho!

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A secularização em Carl Schmitt - Giorgio Agamben

Para Carl Schmitt, "Todos os conceitos decisivos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos” (Teologia Política, p. 35).

Segundo Giorgio Agamben, "A estratégia de Schmitt é, em um certo sentido, inversa em relação àquela de Weber. Enquanto, para este, a secularização era um aspecto do processo de crescente desencantamento e desteologização do mundo moderno, em Schmitt ela mostra, ao contrário, que a teologia continua a encontrar-se presente e a agir no mundo moderno de modo eminente. Isto não implica necessariamente uma identidade de substância entre a teologia e o moderno, nem uma perfeita identidade de significado entre os conceitos teológicos e os conceitos políticos; trata-se, antes, de uma relação estratégica particular, que marca os conceitos políticos, restituindo-os à sua origem teológica [...] A secularização é, então, não um conceito, mas uma assinatura no sentido de Foucault e Malandri, isto é, algo que, em uma acepção ou em um conceito, o marca e o excede para restituí-lo a uma determinada interpretação ou a um determinado âmbito, sem, no entanto, abandonar o semiótico para constituir um novo significado ou um novo conceito. A assinatura deslocando e mudando os conceitos e signos de uma esfera a outra (neste caso, do sacro ao profano, e vice-versa) sem redefini-lo semanticamente [...] A secularização age, neste sentido, no sistema conceitual do moderno como uma assinatura que o restitui à teologia. Como, segundo o direito canônico, o sacerdote secularizado devia portar um sinal da ordem a que pertencia, assim o conceito secularizado exibe como uma assinatura o seu pertencimento à esfera teológica” (Il regno e la gloria: per una genealogia teologica dell'economia e del governo (Homo Sacer 2.2), Vicenza: Neri Pozza, 2007, pp. 15-16, trad. Marcus Vinícius Xavier de Oliveira).

terça-feira, 1 de abril de 2008

Vãmente....

"Vãmente refere-se ao sujeito; em vão refere-se ao objeto; inutilmente é sem utilidade para ninguém. Trabalhou-se vãmente quando não houve resultado, de modo que se perdeu o tempo e o esforço: trabalhou-se em vão quando não se atingiu o objetivo a que se propunha, por causa do defeito do trabalho. Se não consigo dar conta de minha tarefa, trabalho vãmente, perco inutilmente meu tempo e meu esforço. Se minha tarefa realizada não tem o efeito que eu esperava, se não atingi meu objetivo, trabalhei em vão; isto é, fiz uma coisa inútil... Também se costuma dizer que alguém trabalhou vãmente quando não foi recompensado por seu trabalho, ou quando esse trabalho não foi reconhecido; porque nesse caso o trabalhor perdeu seu tempo e seu esforço, sem prejulgar de modo algum o valor de seu trabalho, que pode aliás ser ótimo"

DEBORD, Guy. Comentários sobre a sociedade do espetáculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, p. 237.