quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Elogio de um modo de vida às avessas - Karl Kraus

Tentei durante certo tempo levar uma vida vulgar. Mas senti rapidamente, no corpo e no espírito, as tristes consequências disso. E decidi, antes que fosse tarde de mais, enveredar por uma vida insensata. Olho agora o mundo com este mesmo olhar velado que nos permite, não só passar por cima das misérias terrenas, mas ao qual devo também uma perspectiva exagerada dos possíveis prazeres da vida.

O são princípio dum modo de vida às avessas, no contexto duma ordem invertida do mundo, tornou-se-me visível em todas as situações. Eu também cumpria essa dificuldade que consiste em uma pessoa se levantar com o sol-nascente e deitar-se ao sol-poente. Mas a insuportável objectividade com que o Sol brilha, indistintamente, sobre todos os meus concidadãos e sobre toda a deformidade e fealdade não convém ao gosto de toda a gente; e quem puder escapar a tempo do perigo de ter um olhar esclarecido, nesta terra, há-de com vantagem comportar-se assim e sentir o prazer de ser evitado, por tal razão, por aqueles que evita. No tempo em que o dia se dividia ainda em manhã e tarde, era um prazer levantar-me com o canto do galo e deitar-me ouvindo o pregão do guarda nocturno. Mas depois chegou a outra divisão: a do jornal da manhã e do jornal da tarde – e o mundo pôs-se à espreita dos acontecimentos. Quando, durante algum tempo, se tenha observado a forma vergonhosa como estes acontecimentos se rebaixam perante a curiosidade, se tenha observado a cobardia com que o correr mundo se adapta às necessidades crescentes da informação, e como o tempo e o espaço acabam finalmente por se tornar formas de conhecimento para o assunto jornalístico, a gente vira-se para o outro lado e continua a dormir.

"Ó agredidos olhos, saboreai a sorte de não contemplardes esta ignóbil morada."

Eis a razão por que durmo pelo dia fora. E quando acordo, a fim de saber o que me terá escapado, estendo à minha frente toda a vergonha da humanidade em papel impresso, e sinto-me feliz. A estupidez ergue-se cedo; é a razão pela qual os acontecimentos adquirem o hábito de se dar pela manhã. Muita coisa poderá ainda acontecer até ao fim da tarde; mas, em geral, falta às tardes essa turbulenta actividade graças à qual o progresso humano se esforça por se mostrar digno da sua boa fama até serem horas da ração. O bom moleiro só se levanta quando a roda do moinho pára de girar, e um homem que nada queira ter em comum com essa gente cuja existência se resume a ser cúmplice, levanta-se tarde. Mas depois desço até à Ringstrasse, para os ver preparar o desfile. Dura quatro semanas o barulho, tal como uma sinfonia acerca do tema do dinheiro que de um tal modo se põe em circulação. A humanidade prepara-se para a festa; os carpinteiros instalam tribunas e preços, e quando penso que nada hei-de ver desta pompa, o coração põe-se-me a pulsar com mais força. Tivesse-me eu atido a um modo de vida vulgar, e este desfile ter-me-ia obrigado a sair da cidade; assim, posso por cá ficar e, apesar disso, nada ver. Um velho rei, numa obra de Shakespeare, previne-nos: "Não façais bulha, não façais bulha. Correi as cortinas. Vamos cear de manhã." E um bobo, que constate a inversão desta ordem do mundo, há-de acrescentar: "Cá por mim, vou deitar-me ao meio-dia." Ao fim da tarde, porém, quando eu tomar o pequeno-almoço, tudo há-de estar acabado e, confortavelmente, hei-de saber pelos jornais quantas insolações sucederam.
Os maiores desastres ocorrem todos de manhã; por isso é que mantenho a minha fé na excelência das instituições humanas. Os jornais da tarde, todavia, dão conta, não só do que se passou, mas também de quem estava presente; e a gente sente-se a uma distância segura do lugar do incêndio, ao mesmo tempo que temos a oportunidade de contar as cabeças dos entes queridos que, no meio de outras pessoas, foram em boa altura assinalados, de tal forma que nem uma só cabeça ali falta. Tiremos o melhor partido possível da transformação do Universo em crónica local; sirvamo-nos do processo pelo qual o tempo é encaixotado e rotulado
jornal. O mundo tornou-se mais frio desde que começou a olhar-se todos os dias ao espelho: porque nos contentamos com a imagem, renunciando ao exame do original. É edificante perdermos a fé numa realidade tal qual a descreve um jornal. O homem que durante a metade do dia dorme, ganhou já metade da vida.
Todas as maiores asneiras acontecem de manhã; a gente não deveria acordar senão quando fechassem os serviços públicos. E sair só depois da ceia, num modo de vida livre assim de política. No entanto, não será pelos jornais da tarde que saberemos dos atentados que ocorreram pela manhã, pois em geral os repórteres estão a dormir a essa hora. Há um jornal que enviou os seus correspondentes a Paris uns a seguir aos outros, a fim de se manter informado a tempo e horas dos atentados cometidos contra o Presidente; e olhem, um após outro os presidentes perderam a vida, e, de cada vez que isso aconteceu, a morte de cada presidente foi irmã gémea do sono de um correspondente. Quando há tempos os príncipes alemães se demoraram na nossa cidade e toda a gente veio para a rua, eu nada soube. Este incidente, de resto, não teve para mim quaisquer consequências aborrecidas, com excepção desta: pela primeira vez, não me deram o rosbife habitual ao pequeno-almoço, e como tal não pude dar satisfação ao critério com que até então demonstrava fazer parte da cidade em que vivo. O empregado desculpou-se, e, para me consolar, invocou a consolidação da Tríplice Aliança. Mas eu, enquanto durara essa tal consolidação, nunca deixei de dormir. Se acontece um teólogo decidir-se deixar de crer na Imaculada Conceição, isso passa-se de manhã. Se um núncio se cobre de ridículo, é de manhã que isso se passa; e mais vale que o assalto dos camponeses a uma universidade ou o grito "Sufrágio universal, já!" nos arranque ao sono matinal do que nos perturbem o sono das nossas tardes. Aconteceu-me uma única vez, por acaso, assistir à demissão de um ministro depois do almoço. Em que desordem tudo aquilo se deu! Às três da tarde a polícia desancava a multidão, que barafustara gritando "Fora!", e às quatro menos um quarto já todos diziam: "Voltai pra casa, gentes, qu’o Badeni também já se foi!" […]
Em compensação, a tranquilidade reina de noite em todos os domínios da actividade pública. Nada mexe. Não há nada de novo. Só o carro da limpeza se desloca pelas ruas, como símbolo da ordem invertida do mundo. É então que a poeira acumulada pelo dia se pode dispersar; e, quando chove, o carro-mangueira lá vem depois. Afora isto, é uma paz. Dorme a estupidez, eu ponho-me ao trabalho. Chega-me, de longe, um som como o do ruído de máquinas impressoras: é a estupidez que ressona. Espreito-a, furtivamente, colhendo ainda algum prazer das minhas pérfidas intenções. E quando o primeiro jornal da manhã surge no horizonte leste da civilização, deito-me… Tais são algumas das vantagens de um modo de vida às avessas.

[in Pravda n.º 4, trad. Júlio Henriques, Coimbra, 1986]

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O que é o terrorismo mesmo?

Dentre as muitas definições dadas para o terrorismo, a de Richard Rubenstein parece indicar o caminho correto para a sua compreensão:

“Terrorism is a word used by “ins” to describe the violence of the “outs".